Anúncio

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A DICOTOMIA ESQUERDA-DIREITA



Começando as postagens do blog, trazemos a mais perfeita análise já realizada sobre a dicotomia Esquerda-Direita, a qual foi exposta no livro “Os Intelectuais e a Sociedade” (do economista Thomas Sowell ). 



A DICOTOMIA ESQUERDA-DIREITA



No âmbito da política, uma das fontes mais férteis de confusão, em discussões sobre questões ideológicas, é a dicotomia entre Esquerda e Direita. Talvez a diferença mais fundamental entre Esquerda e Direita é que apenas a primeira tem alguma espécie de definição. O que é chamado de " Direita " resume-se aos múltiplos e díspares adversários da Esquerda. Por sua vez, esses adversários da Esquerda podem não ter qualquer vínculo entre si, seja na composição de princípios comuns, seja na composição de uma agenda política comum, e podem variar, em suas preferências, de libertários do livre mercado a defensores da monarquia, da teocracia, da ditadura militar ou de inumeráveis outros princípios, sistemas e agendas.

Para pessoas que tomam as palavras literalmente, falar da " Esquerda " é assumir que existe implicitamente outro grupo adversário igualmente coerente que se constitui como " Direita ". Talvez causasse menos confusão se o que chamamos de " Esquerda" fosse designado por algum outro termo, um movimento X. Mas a designação em se pertencer à Esquerda tem, ao menos, alguma base histórica nos representantes que se sentavam à Esquerda da cadeira do presidente da Assembleia durante a reunião dos Estados Gerais da França no século XVIII. Hoje, um resumo aproximado sobre a Esquerda política seria a visão que promove a tomada de decisões coletivistas, por meio da ação direta do governo e de suas agências, os quais visam ao objetivo de reduzir as desigualdades sócio econômicas. Podemos adotar posições moderadas ou extremas sobre essa visão ou agenda da Esquerda, mas entre aqueles designados " de Direita ", a diferença entre libertários do livre mercado e juntas militares não é apenas de grau, na perseguição de uma visão em comum, mas de fato não existe qualquer visão em comum entre eles. O que significa dizer que não existe um bloco que possa ser definido como " Direita ", embora existam múltiplos segmentos designados nessa categoria genérica, como os defensores do livre mercado, os quais podem ser definidos.



A heterogeneidade que encontramos na " Direita " não é o único problema da dicotomia Esquerda-Direita. Dentro do espectro político concebido pelos participantes da intelligentsia, reina a imagem comum que se estende desde comunistas que se posicionam no extremo à Esquerda até esquerdistas menos extremistas, passando por progressistas mais moderados, centristas, conservadores, direitistas mais radicais e finalmente os fascistas. Esse quadro é tido como certo pela intelligentsia, mas é mais um exemplo de conclusão sem prova, a menos que uma interminável repetição possa ser considerada prova. Ao nos desviarmos das imagens consagradas, buscando as especificidades, observamos que, exceto pela retórica, existe notável e mínima diferença entre fascistas e comunistas. Observamos também que há muito mais em comum entre fascistas e até mesmo a Esquerda moderada do que entre ambos e os tradicionais conservadores no sentido norte-americano do termo. Uma análise mais atenta esclarecerá o ponto.

Comunismo é socialismo com vocação internacional e métodos totalitários. Benito Mussolini, o fundador do fascismo, definia-o como nacional socialismo num estado totalitário, termo também por ele cunhado. A mesma ideia foi usada na Alemanha. Tivemos o Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, o partido de Hitler, agora quase sempre abreviado como partido dos nazistas, enterrando-se e ocultando o termo socialista. Visto em retrospecto, embora a característica predominante entre os nazistas fosse o racismo em geral e o racismo antissemita em particular, esse elemento de ódio racial não era inerente à visão fascista, uma vez que não era compartilhado pelo governo fascista de Mussolini, na Itália, ou de Franco, na Espanha.

Numa ocasião, os judeus foram de fato amplamente representados entre os líderes fascistas na Itália. Somente depois que Mussolini se tornou o parceiro caçula de Hitler na composição das forças do Eixo, no final da década de 1930, que os judeus foram expulsos do partido fascista italiano. E só depois que a autoridade de Mussolini foi neutralizada, em 1943, e seu governo substituído por um governo fantoche implantado pelos nazistas, no norte da Itália, que os judeus residentes naquela parte da Itália foram cercados e enviados para os campos de concentração.45 Portanto, um governo explícita e oficialmente dominado por ideologia e prática racistas diferenciava os nazistas de outros movimentos fascistas.

O que distinguia os movimentos fascistas, em geral, dos movimentos comunistas era o fato de os comunistas estarem oficialmente comprometidos com a apropriação governamental dos meios de produção, enquanto os fascistas permitiam a manutenção da propriedade privada dos meios de produção desde que o governo direcionasse as decisões dos proprietários e limitasse os índices de lucro que esses proprietários poderiam receber. Eram ambos os sistemas totalitários, embora os comunistas fossem oficialmente internacionalistas, ao passo que os fascistas se diziam nacionalistas. No entanto, a proclamada política de Stalin de " socialismo em uma nação " não era muito diferente da proclamada política do nacional socialismo dos fascistas.Quando chegamos aos aspectos práticos, encontramos diferenças ainda menores, pois é certo que a Internacional Comunista servia aos interesses nacionais da União Soviética, apesar de toda a retórica internacionalista usada. A maneira como os comunistas do mundo todo, inclusive nos Estados Unidos, retiraram a oposição que faziam aos esforços conjuntos de ajuda militar entre as nações ocidentais na Segunda Guerra Mundial, num período de 24 horas após a invasão da União Soviética pelas forças de Hitler, é apenas o mais dramático de muitos exemplos que poderiam ser citados.

Em relação ao suposto comedimento dos interesses fascistas, limitados às políticas de seus próprios países, ele foi desmentido pelas invasões efetuadas tanto por Hitler quanto por Mussolini, assim como pela rede de operações internacionais dos nazistas, que operava por meio de alemães vivendo em outros países, abarcando do Brasil à Austrália .46 Todas essas agências estavam submetidas aos interesses nacionais alemães, passando por cima de inclinações ideológicas ou de interesses privados de seus integrantes. Dessa forma, as queixas dos alemães que viviam como sudetos, na Tchecoslováquia, foram inflamadas durante a crise de Munique de 1938 como parte do plano de expansão territorial da Alemanha, ao passo que os alemães que viviam na Itália foram obrigados a abafar suas reclamações, já que Mussolini era aliado de Hitler.47 

À medida que a União Soviética proclamava seu internacionalismo e anexava várias nações, que continuavam a ser " oficialmente independentes ", as pessoas que detinham o poder real nessas nações, geralmente sob o título de " segundo-secretário" do partido comunista, eram quase sempre russos, 48 repetindo o padrão dos tempos dos czares, os quais governavam o que era mais honestamente chamado de Império Russo.

Portanto, a noção de que comunistas e fascistas se configuram em polos ideológicos não é verdadeira nem em teoria e muito menos na prática. Comparando-se, de um lado, as semelhanças e as diferenças entre esses dois movimentos totalitários e, do outro, o conservadorismo, há muito mais semelhança entre esses dois sistemas totalitários e suas respectivas agendas, incluindo a agenda da própria Esquerda, do que com as agendas da grande maioria dos grupos conservadores. Por exemplo, entre os itens que compunham a agenda dos fascistas na Itália, assim como dos nazistas na Alemanha, temos (1) controle governamental sobre os salários e as horas de trabalho, (2) impostos mais altos sobre os ricos, ( 3 ) limites governamentais sobre os lucros, (4) controle governamental sobre os cuidados com a população de idosos, (5) esvaziamento do papel da religião e da família nas decisões pessoais e sociais e (6) estabelecimento de métodos de engenharia social para alterar a natureza das pessoas, geralmente desde a primeira infância.49 Esse último e mais audacioso projeto faz parte da ideologia da Esquerda, tanto a Esquerda democrática quanto a totalitária, uma vez que existe desde o século XVIII, quando Condorcet e Godwin defenderam tal tipo de intervenção, e que ainda é defendido por inúmeros outros intelectuais.50 Esse projeto já foi colocado em prática em vários países, recebendo nomes como " reeducação " e " retificação de valores ". 51

Certamente, essas diretrizes são, para a maioria dos conservadores nos Estados Unidos, inaceitáveis. Por outro lado, são visões congênitas às abordagens defendidas pelos liberais - os progressistas norte-americanos - dentro do contexto político norte-americano. Deve-se notar que os termos liberal e conservative, como são usados no contexto norte-americano, não guardam muita semelhança com os significados originais. Milton Friedman, um dos líderes do movimento intelectual"conservador" de sua época, defendia mudanças radicais no sistema escolar dos Estados Unidos, assim como queria alterar o papel do Banco Central na economia. Um de seus livros foi intitulado The Tyranny of the Status Quo [A Tirania do Status Quo]. Da mesma forma que Friedrich Hayek, Friedman se via como liberal, respeitando o sentido original do termo, mas esse sentido foi completamente alterado nos Estados Unidos, embora visões semelhantes às suas ainda sejam conhecidas como visões liberais em alguns outros países.Apesar disso, os estudos acadêmicos designam Hayek como defensor do status quo, como um daqueles intelectuais cuja " defesa do estado existente de coisas fornece justificativas para os poderes consagrados". 52 Quaisquer que fossem os méritos ou os deméritos das ideias de Hayek, elas se distanciavam muito mais do status quo do que as ideias dos intelectuais que o criticavam. Pessoas como Hayek, que em geral são designadas como "conservadoras ", articulam ideias que diferem em grau e em gênero de seus alegados pares ideológicos, distanciando-se das ideias de outros participantes da chamada Direita política. Talvez se os liberais fossem chamados simplesmente de X e os conservadores de Y haveria menos confusão.

Conservadorismo, em seu sentido original, não tem qualquer conteúdo ideológico específico já que depende do que se está tentando, em cada caso, conservar. Nos últimos dias da União Soviética, os indivíduos que lutavam pela preservação do regime comunista existente eram designados, acertadamente, de "conservadores", embora aquilo que buscavam conservar nada tivesse em comum com o que era defendido por Milton Friedman, Friedrich Hayek ou William F. Buckley, nos Estados Unidos. Muito menos esse "conservadorismo comunista " poderia ser confundido com as posições do cardeal Joseph Ratzinger, uma liderança conservadora no Vaticano e que, posteriormente, foi sagrado papa. Indivíduos que recebem o rótulo de " conservadores" têm posições ideológicas específicas, mas isso não confere associação direta entre suas especificidades, distintas em cada um dos diferentes contextos e locais. Caso nos esforcemos por definir a Esquerda, segundo seus objetivos proclamados, torna-se evidente que objetivos muito semelhantes foram proclamados por pessoas que a Esquerda repudiou e anematizou, chamando-as de fascistas e de nazistas. Portanto, em vez de definir esses grupos por seus objetivos proclamados, podemos defini-los pelos seus mecanismos institucionais específicos e pelas políticas que executam ou defendem a fim de alcançar esses objetivos. Mais especificamente, esses grupos podem ser definidos a partir dos mecanismos institucionais que buscam impor, no intuito de controlar as decisões mais significativas sobre a sociedade em geral. Para fins explicativos de nossa análise é preciso separar, de um lado, os processos que respeitam e defendem as decisões tornadas individualmente dos processos que defendem decisões de cunho coletivista executadas por terceiros. Essa dicotomia esquemática é necessária diante da vastíssima gama de possíveis mecanismos de decisão e controle. Por exemplo, nas economias de mercado, consumidores e produtores tomam individualmente suas decisões. As consequências sociais são determinadas pelos efeitos acumulados das decisões individuais na forma corno os recursos são alocados na economia como um todo e na resposta que dão à variação de preços, de renda e de emprego, os quais, por sua vez, afetam a relação de oferta e de demanda.

Embora esse tipo de visão sobre a economia seja geralmente considerado "conservador" (no sentido original do termo), uma vez colocado sob a longa perspectiva da história das ideias torna-se uma visão revolucionária. Desde os tempos antigos até o presente, abarcando sociedades completamente distintas por todo o mundo, encontramos os mais variados sistemas de pensamento tanto secular quanto religioso, os quais buscam determinar como os melhores, mais sábios e virtuosos podem influenciar ou dirigir as massas a fim de criar ou de manter uma sociedade mais feliz, viável e valorosa. Diante de tal quadro histórico, foi um ponto de partida revolucionário quando, na França do século XVIII, os fisiocratas se levantaram para proclamar que, ao menos para a economia, o melhor que as autoridades reinantes poderiam fazer seria deixar o processo caminhar por si mesmo. Laissez-faire foi o termo que cunharam. Os que adotavam a nova visão diziam que a imposição de políticas econômicas pelas autoridades seria uma preocupação " altamente desnecessária", usando as palavras de Adam Smith.53 Favorecia-se um sistema espontâneo de interação, o qual funcionaria muito melhor sem intervenções governamentais, embora não fosse perfeito, apenas melhor.

Variações nessa visão de ordem espontânea podem também ser encontradas em outras áreas, passando da linguagem às leis. Nenhuma elite jamais se reuniu para determinar as línguas dos povos, de qualquer sociedade que seja. Esses idiomas evoluíram a partir de interações sistêmicas entre milhões de indivíduos ao longo de muitas gerações, nas mais variadas sociedades mundo afora. Os acadêmicos em línguas estudam e codificam a s regras da linguagem, mas depois do fato. As crianças aprendem a s palavras e o uso, intuindo as regras do uso antes que elas sejam ensinadas formalmente nas escolas. Apesar de ter sido possível às elites criar línguas como o esperanto, tais sistemas artificiais nunca se sobrepuseram às línguas historicamente desenvolvidas.

Na esfera das leis, uma visão semelhante foi expressa pelo juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes, quando afirmou que: "A vida da lei não é dirigida pela lógica, mas pela experiência".54 Portanto, seja no universo da economia, da linguagem ou das leis, essa visão concebe a viabilidade social e o progresso em função direta com as evoluções e os processos sistêmicos, não se subordinando às prescrições das elites. A confiança em processos sistêmicos, seja na área da economia e do direito, seja em outras áreas, baseia-se na visão cautelosa e dos limites, a visão trágica, a qual percebe as severas limitações de conhecimento e de insight em qualquer indivíduo, mesmo considerando todo o brilhantismo e a erudição que esse ser humano possa porventura possuir. Os processos sistêmicos, em cuja dinâmica integram-se conhecimentos e experiências muito mais vastos, pois há uma quantidade gigantesca de pessoas envolvidas, geralmente tradições inteiras que evoluíram a partir das experiências de sucessivas gerações, são processos muito mais confiáveis do que os intelectos dos intelectuais.

Diferentemente, a visão da Esquerda é a que favorece os tomadores de decisão terceirizados e isso se realiza por meio dos que supõem deter não apenas conhecimento superior, mas o suficiente em suas ações como líderes políticos, especialistas, juízes, dentre outros. Essa é uma visão comum aos variados matizes da Esquerda política, abarcando tanto a ala radical quanto a moderada e que também se faz presente nos setores totalitários, sejam eles comunistas ou fascistas. Uma noção de propósito comum, na sociedade, é central para a constituição de processos coletivistas, expressa tanto em instituições democráticas quanto totalitárias ou nas variações entre ambas. Uma das diferenças existentes entre os sistemas democráticos e os sistemas totalitários, dentro da mesma lógica coletivista, é a de grau, a qual se traduz na amplitude e na penetração das decisões terceirizadas pelo governo, assim como na amplitude deixada para os indivíduos fora do controle do governo.

O livre mercado, por exemplo, é uma gigantesca esfera de ação que se furta ao poder governamental. Em tal tipo de mecanismo não existe uma associação comum de propósitos, exceto entre indivíduos e associações específicos, os quais decidam voluntariamente agregar-se em grupos, que podem variar de ligas de boliche a corporações multinacionais. Mas mesmo essas agremiações buscam, tipicamente, os interesses de seus respectivos membros constituintes, e competem contra os interesses de outras agremiações. Os que defendem esse mecanismo social de controle disperso o fazem porque acreditam que os resultados sistêmicos de tais competições e interações são geralmente mais satisfatórios do que a formação de uma monstruosa agremiação para imposição de propósitos comuns, forçada, goela abaixo, por tomadores de decisão terceirizados, os quais supervisionam todo o processo em nome do " interesse nacional ".

A versão totalitário-coletivista de um exército de burocratas terceirizados, comandados por um governo totalitário, foi resumida no lema de Mussolini: "Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado".55 Além do mais, o Estado significava fundamentalmente o líder político que o conduzia absolutamente, o ditador. Mussolini era conhecido como Il Duce, o líder, antes que Hitler recebesse o mesmo título na Alemanha, o Führer. As versões democráticas do mesmo mecanismo coletivista de tomada de decisão, observadas em sociedades que escolhem seus líderes em eleições, tendem a deixar parcelas maiores de atividade socioeconômica fora do controle do governo. Todavia, a Esquerda raramente adota princípios explícitos por meio dos quais as fronteiras entre a ação do governo e as decisões individuais possam ser facilmente determinadas. Isso acaba levando à tendência, ao longo do tempo, de ampliar as zonas de interferência do governo à medida que quantidades cada vez maiores de decisões são retiradas das mãos dos indivíduos.

Preferências por tomadas de decisão de cunho coletivista, feitas de cima para baixo, não esgotam todo o repertório que a Esquerda democrática compartilha com os primeiros fascistas italianos e com os nacionais socialistas, os nazistas, da Alemanha. Somando-se à política altamente intervencionista sobre os mercados econômicos, a Esquerda democrática também compartilhou, com os fascistas e os nazistas, a suposição de um abismo de compreensão e de inteligência entre as pessoas comuns e as elites, como eles. Embora tanto a Esquerda totalitária - fascistas, comunistas e nazistas - quanto a democrática tenham feito uso de termos como "povo", "trabalhadores" e "massas", colocando-os como beneficiários ostensivos de suas políticas, essas categorias não ostentam, no entanto, qualquer autonomia em suas decisões. Muito da retórica orquestrada tanto pela Esquerda democrática quanto pela totalitária já esvaziou, há muito tempo, a importante distinção entre as pessoas enquanto beneficiárias e autônomas para tomarem suas próprias decisões. Nesse universo ideológico, o privilégio das decisões é propriedade exclusiva dos intelectuais ungidos, e isso é tido como certo.

Rousseau, apesar de toda ênfase que deu à "vontade geral ", deixou às elites o papel exclusivo de interpretar essa " vontade geral ". Ele via as massas como algo parecido a um "estúpido e pusilânime inválido ".56 Godwin e Condorcet também expressaram, no século XVIII, um desprezo semelhante às massas.57 Karl Marx disse: "Ou a classe trabalhadora se faz revolucionária ou não é nada " .58 Em outras palavras, para esses intelectuais, milhões de seres humanos só tinham qualquer importância se adotassem a visão deles. O socialista fabiano George Bernard Shaw incluía a classe trabalhadora entre os tipos " detestáveis ", pessoas que não têm " direito de viver". Ele completava: " Ficaria desesperado caso não soubesse que todos fatalmente morrerão e não há necessidade alguma que justifique a permanência deles neste mundo ".59 Como integrante do exército norte-americano durante a Primeira Guerra Mundial, Edmund Wilson escreveu a um amigo: "Não seria sincero se dissesse que as mortes desses homens, esse 'lixo branco miserável do sul' e de outros me causam a metade da dor que sinto com a mera convocação e o alistamento de qualquer um de meus amigos" .60

A Esquerda totalitária tem sido igualmente clara em seu entendimento sobre controle absoluto por parte de uma elite política a controlar absolutamente os poderes decisórios: a " vanguarda do proletariado ", os líderes de uma " raça superior " ou qualquer outro slogan em particular. Nas palavras do próprio Mussolini: "As massas simplesmente seguirão e se submeterão".61

Em relação às suposições fundamentais, a semelhança entre os múltiplos movimentos totalitários e a Esquerda democrática foi abertamente reconhecida pelos próprios líderes da Esquerda dos países democráticos, durante a década de 1920, num momento em que Mussolini era totalmente idolatrado por muitos intelectuais das democracias ocidentais, e numa época em que mesmo Hitler angariava admiradores entre proeminentes intelectuais de Esquerda. Foi somente após o desenrolar dos acontecimentos, durante a década de 1930, com a invasão da Etiópia por Mussolini e o violento antissemitismo de Hitler na Alemanha, além de suas agressões militares contra países vizinhos, que eles se tornaram párias internacionais. A partir daí seus sistemas totalitários foram repudiados pela Esquerda e retratados como sendo " de Direita".62

Durante a década de 1920, todavia, o escritor radical Lincoln Steffens escrevia positivamente sobre o fascismo de Mussolini, assim como escrevera, mais notoriamente, sobre as vantagens do comunismo soviético.63 Ele não era, contudo, o único radical ou progressista norte-americano a fazer tal coisa.64 Em 1932, o famoso romancista e socialista fabiano H. G. Wells conclamou os alunos de Oxford para que se tornassem " fascistas liberais" e "nazistas esclarecidos ".65 O historiador Charles Beard estava entre os apologistas de Mussolini que viviam nas democracias ocidentais, o mesmo acontecia com a revista New Republic.66 O poeta Wallace Stevens chegou a justificar a invasão da Etiópia por Mussolini. 67 

W. E. B. Du Bois ficou, durante a década de 1920, tão intrigado pelo movimento nazista que decorou com suásticas as capas de uma revista que editou, apesar dos protestos da comunidade judaica.68 Embora Du Bois tivesse que lidar com o problema do antissemitismo, que o nazismo implicava, ele dizia, na década de 1930, que a criação da ditadura nazista "foi absolutamente necessária para a reorganização do Estado" na Alemanha, e durante um discurso no Harlem, em 1937, declarou: "De certa forma, hoje existe mais democracia na Alemanha do que existia nos anos anteriores". 69 O fato mais revelador é que ele via os nazistas como integrantes da Esquerda. Em 1936, ele disse: "A Alemanha é hoje, ao lado da Rússia, o maior exemplo de sociedade marxista".70

No entanto, a heterogeneidade das posições foi perdida, as quais foram encerradas num só saco, atirado para longe da Esquerda. A Direita permitiu que a Esquerda expulsasse de si e aglutinasse, numa mesma categoria caótica, os vários segmentos ideológicos que, embora participassem da visão da Esquerda, tornaram-se constrangedores e, com isso, foram repudiados. Portanto, a grande celebridade do rádio, nos Estados Unidos da década de 1930, o padre Coughlin, que era, dentre outras coisas, antissemita, foi verbalmente banido para a " Direita", muito embora ele defendesse boa parte das propostas políticas que acabaram se transformando no New Deal. Muitos congressistas democratas, em determinado momento, elogiaram o padre publicamente e alguns progressistas instaram o presidente Franklin D. Roosevelt para que o tornasse membro do gabinete da presidência. 71

Durante esse período inicial, era comum na Esquerda, como em outros lugares, comparar, considerando experimentos aparentados, o fascismo na Itália, o comunismo na União Soviética e o New Deal nos Estados Unidos.72 Posteriormente, tais comparações foram completamente rejeitadas, assim como fora a figura do padre Coughlin, um genuíno representante da Esquerda. Essas mudanças arbitrárias nas classificações não apenas permitiram que a Esquerda se distanciasse de grupos e de indivíduos constrangedores, cujas suposições e conclusões subjacentes detinham muitas semelhanças entre si, mas também deu à Esquerda a condição de transferir retoricamente o ônus dos constrangimentos para seus adversários políticos. Além do mais, tais mudanças de nomenclatura reduziram grandemente a probabilidade de observadores verem todo potencial negativo das ideias e das agendas promovidas pela Esquerda em seu perpétuo jogo para adquirir influência ou poder.

A concentração do poder do Estado, almejada pela Esquerda, está retoricamente a serviço de múltiplos e sublimes objetivos, porém tamanhas concentrações de poder oferecem, na realidade, grandes oportunidades para que se cometa toda sorte de abusos, desembocando em genocídios e assassinatos em massa perpetrados por homens como Hitler, Stalin, Mao e Pol Pot. Nenhum desses líderes tinha uma visão trágica do homem, que subentendesse o pensamento " conservador" dos Estados Unidos de hoje. Foram precisamente as presunções de ditadores como esses, iludidos pelas supostas vastidão e superioridade de seus conhecimentos e de sua sabedoria, considerados muito acima dos parcos conhecimentos das pessoas comuns, que ocasionaram essas assombrosas tragédias que se abateram sobre populações inteiras.



Fontes:

43 Ibidem, p. 822-2 3. A afirmação original de Holmes de que "a lei comum não se manifesta como solene onipresença a pairar no céu " foi retirada do caso Southern Pacific Co. vs. Jensen, julgado na Suprema Corte. Ele também usou a frase em uma carta ao jurista britânico Sir Frederick Pollock. Mark DeWolfe Howe (ed.), Holmes-Pollock Lettters: The Correspondence of Mr. Justice Holmes and Sir Frederick Pollock 1874- 1932. Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1942, v. 2, p. 215.

44 Alfred Lief (ed.), The Dissenting Opinions of Mr. Justice Holmes. Nova York, The Vanguard Press, 1 929, p. 33.

45 Jonah Goldberg, Liberal Fascism: The Secret History of the American Left from Mussolini to the Politics of Meaning. Nova York, Doubleday, 2008, p. 17, 25-26.

46 Ver, por exemplo, G. Kinne, "Nazi Stratagems and Their Effects on Germans in Australia up to 1945 ". Royal Australian Historical Society. V. 66, parte 1 (jun. 1980), p. 1-19; Jean Roche, La Colonisation Allemande et Le Rio Grande do Sul. Paris, Institut des Hautes Études de L' Amérique Latine, 1959, p. 541-43.

47 Valdis O. Lumans, Himmler's Auxiliaries. Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1993, p. 77-87.

48 Hélene Carrere d'Encausse, Decline of an Empire: The Soviet Socialist Republics in Revolt. Nova York, Newsweek Books, 1980, p. 146, 150-51 .

49 Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 45-46, 410-13.

50 Ibidem, p. 324-25, 344-57.

51 Ver, por exemplo, o capítulo III de meu livro Inside America Education: The Decline, the Deception, the Dogmas. Nova York, The Free Press, 1993.

52 Lewis A. Coser, Men of Ideas: A Sociologist's View. Nova York, The Free Press, 1970, p. 141.

53 " O estadista que tentasse direcionar a vida econômica das pessoas privadas, na maneira como devem empregar seus capitais, não apenas traria para si uma responsabilidade desnecessária, mas assumiria uma autoridade que não poderia ser facilmente confia da, não apenas a um indivíduo qualquer, mas também a um Conselho ou Senado de qualquer tipo, e isso seria mais perigoso do que nunca nas mãos de alguém que tivesse tornado de loucura e de presunção suficientes para pensar que pudesse exercer tal poder." Adam Smith, Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Nova York, Modern Library, 1 937, p. 423.

54 Oliver Wendell Holrnes Jr., The Common Law. Boston, Little, Brown and Cornpany, 1 923, p. 1.

55 Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 52.

56 Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract. Trad. Maurice Cranston, p. 89.

57 William Godwin, Enquiry Concerning Polítical Justice, v. 1, p. 446; Antoine-Nicolas de Condorcet, Sketch for a Historical Picture of the Progress of the Human Mind. Trad. June Barraclough. Londres, Weindenfeld and Nicolson, 1955, p. 114.

58 Karl Marx e Frederick Engels, Selected Correspondence 1 846- 1 895. Trad. Dona Torr. Nova York, International Publishers, 1942, p. 190.

59 Bernard Shaw, The Intelligent Woman's Guide to Socialism and Capitalism, p. 456.

60 Edmund Wilson, Letters on Literature and Politics 1912-1972. Ed. Elena Wilson. Nova York, Farrar, Straus and Giroux, 1 977, p. 36. Nem foi devido ao racismo dos brancos do sul, pois Wilson fez referência ao quanto Chattanooga
lhe desagradava por causa " dos seus pretos e dos moinhos" (Ibidem, p. 217, 220). Anos mais tarde, ao ver a pobreza da Itália no final da Segunda Guerra Mundial, Wilson disse: " Essa não é a forma como os brancos deveriam viver" (lbidem, p. 423).

61 Citado em Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 38.

62 As batalhas de rua entre nazistas e comunistas na Alemanha da década de 1920 foram conflitos sangrentos entre facções que competiam pelo apoio do mesmo eleitorado, da mesma forma que os comunistas mataram os socialistas durante a Guerra Civil Espanhola e Stalin expurgou os trotskistas da União Soviética.

63 Lincoln Steffens, "Stop, Look, Listen!". The Survey, 01/03/1927, p. 735-37, 754-55.

64 Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 28-29.

65 Ibidem, p. 21. Um ano mais tarde, depois da ascensão de Hitler ao poder, Wells o caracterizava como " bronco desajeitado" com "seus símbolos idiotas" e "suas crueldades imbecis". H. G. Wells rotulava os nazistas de " broncos". New York Times, 22/09/1933, p. 13. Em 1939 ele atacava tanto Mussolini quanto Hitler, embora ele isentasse a União Soviética de suas recriminações. Ver "Wells Sees U.S. Hope for Mankind " . New York Times, 04/08/1939, p. 3.

66 Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 100-01 , 103-04.

67 Ibidem, p . 26-27.

68 Ibidem, p. 103.

69 Ibidem, p. 10.

70 Daniel J. Flynn, lnteclectual Morons: How ldeology Makes Smart People Fali for Stupid ldeas. Nova York, Crown Forum, 2004, p. 173.

71 Jonah Goldberg, Liberal Fascism, p. 140.

72 Ibidem, p. 122-23, 146-48 .




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Anuncio